terça-feira, 11 de março de 2014

Nem Luz nem Escuridão.

Bateu à porta repetidamente, sem dar tempo de resposta.
Abri, era o Gabriel!
Entrou.
Murmurou um som cambaleante como a sua marcha...
A cabeça caída, provocava o desequilibro e trocava passos no chão sem se largar dele...
Completamente embriagado!
Entrou sem a licença e o protocolo que lhe é habitual. Não me abraçou, não perguntou pelas minhas aventuras, não sorriu nos meus olhos, não perguntou entre gargalhadas e o piscar de olhos pelo "Merdas" do meu pai... Directamente para a sala, falhou o sofá na queda e estatelou-se no chão.
O Ibrahim, que se encontrava na cozinha, correu para o local do estrondo.
-Ui! Disse o Ibrahim. Não vai acordar tão cedo, vamos leva-lo para o quarto.
Acabamos por o deixar no sofá que a colaboração era nenhuma...
O Ibrahim tirou-lhe um papel que trazia dobrado, meio amarfanhado, na mão, daqueles que servem de toalha nos restaurantes cujo o vinho vende-se pelo preço, não pela qualidade...

Depois de ler, entregou-me o papel com um sorriso, meio maroto, dizendo:
- Hum, ainda está, literalmente, na cegueira!

Entre as nódoas de tinto, entre palavras riscadas e rabiscadas, incluídas e excluídas, com setas a coloca-las nos correctos lugares, conseguia ler-se:

"Nem luz nem escuridão.

Descias a rua em forma de luz,
Eu... na minha escuridão... seguia-te!
Sem sombras a acompanhar, não via para alem da tua claridade,
e seguia-te assustado...
Com medo de perder a única luz conhecida...

Sem compreender a razão...
Sopraste violentamente e escureceste o meu caminho!
Ceguei na escuridão.
Permaneci imóvel e o som dos teus passos distanciou-se...

O abismo rodeou-me. Para qualquer lado o mesmo negro infinito...
Com medo dos meus passos permaneci imóvel.
Que importa o movimento, provavelmente já estou em queda!
Como uma criança chorei por ti, gritei  o abandono.
Esperei ouvir o eco da tua presença...
Mas as trevas, de tão profundas, levaram os meus gritos sem uma única resposta...

Num acto de raiva, gritei a exigência de uma estrela, e ela surgiu!
Em espanto, pedi um luar e... Reflectiu!
Abracei o meu poder! Quero então mil sois. Quero cegar de tanta luz.
Que em cada ponto de negritude uma fonte me ilumine, que me impossibilite de ver uma só sombra de mim. Seja a luz um oceano que me afogue na sua imensidão...

Cerrei novamente os olhos, mas à luz, não a quero...
Ergui-me sem medo da escuridão,
levantei o peito e a fronte, deixei que a soberba me apoderasse.
Com a confiança de um cego que compreende a existência da luz,
Caminhei, não no solo firme,
mas na sombra que provoco..."

-Assim deitado...
Não provoca muita sombra... Pelo menos visível!
Amanhã... Amanhã, terá direito a uma estrela nova.
Gozava o Ibrahim, já de costas encaminhando-se para a cozinha...

Bicho