Perfilávamos as máscaras no corredor enquanto aguardávamos que alguém arrumasse a mala e se sentasse no seu lugar. Se nos olhávamos, descobríamos que afinal, os expressivos olhos não contam tudo e continuamos os mesmos estranhos que já o éramos quando não as usávamos...
Foi curta a paisagem até o Oriente.
Uma voz entrou na carruagem, atrás da voz surgiu uma carita, expressão feliz, uns enormes óculos que realçavam os seus olhos revelando a trissomia do cromossoma vinte e um.
"(...) Eu vou dizer o teu lugar João. A Ana fica ao meu lado! A Ana pode ir ao meu lado, professora? O João tem... "
Falava, descrevia o que via, rodava rapidamente a cabeça, as tranças voavam e os olhos procuravam novidade.
"São estas filas aqui…" Disse a professora. Eram quatro as crianças, na verdade seriam já breves adolescentes.
A Ana sentou-se ao lado da…
Nunca lhe soube o nome apesar de ter sido ela a anunciar o dos outros.
A Ana era calada, quieta, olhos baixos, atenta ao caminho de quem percorria o corredor da carruagem. Interrompia longos silêncios com breves cochichos ao ouvido da sua parceira de banco. Esta, repetia as palavras de forma audível apesar de ser ela a destinatária das mesmas.
Repetia em voz alta e dava lhe sua resposta. Sempre com alguma graça.
Os óculos eram faróis rotativos entre a Ana e o Banco de trás. De tempos a tempos enviava relatório situacional sobre o estado dos outros colegas à professora.
"Ó Professora, o João levantou-se!"
Um miúdo magro, alto, face tranquila mas irrequieto, cadeira, corredor, andar, quieto não, a perna mexer, quieto não, sentado não. O seu corpo vibrava e era constante o movimento. Mexia com dominio, quieto não, o movimento não era espástico, quieto não, era energia pura a fervilhar, quieto não..
"Professora, vou andar no comboio, está bem?"
"Vai lá! Mas a cada passagem tens que perguntar se podes continuar…"
"Obrigado! "
E foi!
Falava pouco e baixo, ria-se com o outro João, o reguila!
Talvez o mais velho de idade, talvez o mais novo no desenvolvimento...
Também com síndrome de down. Aqui e ali, lançava umas frases. Divertia as miúdas, a professora, e toda a plateia que tinha ao seu dispor. Algumas dessas intervenções eram de uma pureza sem par, misturadas em sagacidade e inocência, por vezes, concluia em paradoxos perfeitos. Daqueles que nos obrigam à consciencialização da nossa perda da inocência, da imposta formatação existente nas nossas cabeças…
Como deveríamos seguir lhe o exemplo e repensar as coisas simples..
A viagem implica tempo, o tempo mudança, e a novidade acalma, os momentos intervalam-se mas os quatro sempre presentes...
"Ó Sra Professora, o João está a chorar!"
Disse a pequenita atrás dos seus óculos.
A professora sempre atenciosa: "Que foi João?"
"Estou com saudades do meu avó." Disse o João traquina.
A professora explicou, já era notório o interesse circundante...
O Pedro saiu de casa às 4:00 da manhã, de Sanfins do Douro, saiu para ir apanhar um avião, fazer um batismo de voo até Lisboa, juntamente com os colegas.
Chegados a lisboa, andaram de Metro, foram ao Coliseu ver o Circo, visitaram um museu, cuja referência alegrou o João de tal forma, que deu um aberto e alegre grito! Onde foi nao sei mas foi bom para o João!
"E fomos ao MacDonalds!" Acrescentou a Tranças.
Regressavam agora a casa.
O Avô do João está em casa e está bem. Todos os dias, aquela hora, a carrinha da escola deixa o João em casa do avô. Era hora e o João gosta do Avô, sentiu saudades. É simples o amor.
Nesse momento, e apesar das máscaras, foi visível e sentida uma comoção geral, os olhos falaram, havia em nós vários Joões a sentirmos as mesmas lágrimas de saudades do avô.
Somos todos tão iguais...
E a carruagem ficou toda nos miúdos, os olhares trocaram-se, houve risos colectivos. Havia generosidade no ar…
Soube a Natal!
Se calhar foi, quem sabe?
Que o seja!
Importante é haver, viver as saudades, ser Natal é fazer todos presentes...
Um beijinho para as minhas saudades.
Saíram no Porto.
Tinham transporte à espera, o Avô do João veio buscá-los.
Ibrahim
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