quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Os quatro de Natal.

Perfilávamos as máscaras no corredor enquanto aguardávamos que alguém arrumasse a mala e se sentasse no seu lugar. Se nos olhávamos, descobríamos que afinal, os expressivos olhos não contam tudo e continuamos os mesmos estranhos que já o éramos quando não as usávamos...

Foi curta a paisagem até o Oriente. 

Uma voz entrou na carruagem,  atrás da voz surgiu uma carita, expressão feliz, uns enormes óculos que  realçavam  os seus olhos revelando a trissomia do cromossoma vinte e um.

"(...) Eu vou dizer o teu lugar João. A Ana fica ao meu lado! A Ana pode ir ao meu lado, professora? O João tem... "

Falava, descrevia o que via,  rodava rapidamente a cabeça, as tranças voavam e os olhos procuravam novidade. 

"São estas filas aqui…"  Disse a professora.  Eram quatro as crianças, na verdade seriam já breves adolescentes.

A Ana sentou-se ao lado da… 

Nunca lhe soube o nome apesar de ter sido ela a anunciar  o dos outros.

A Ana era calada, quieta, olhos baixos, atenta ao caminho de quem percorria o corredor da carruagem. Interrompia longos silêncios com breves cochichos ao ouvido da sua parceira de banco.  Esta,  repetia as palavras de forma audível apesar de ser ela a destinatária das mesmas. 

Repetia em voz alta e dava lhe sua resposta. Sempre com alguma graça.

Os óculos eram faróis rotativos entre a Ana e o Banco de trás. De tempos a tempos enviava relatório situacional sobre o estado dos outros colegas à professora. 

"Ó Professora, o João levantou-se!"

Um miúdo magro, alto, face tranquila mas irrequieto, cadeira, corredor, andar, quieto não, a perna mexer, quieto não, sentado não. O seu corpo vibrava e era constante o movimento. Mexia com dominio, quieto não, o movimento não era espástico, quieto não, era energia pura a fervilhar, quieto não..

"Professora, vou andar no comboio, está bem?" 

"Vai lá! Mas a cada passagem tens que perguntar se podes continuar…"

"Obrigado! "

E foi!

Falava pouco e baixo, ria-se com o outro João, o reguila! 

Talvez o mais velho de idade, talvez o mais novo no desenvolvimento...

Também com síndrome de down. Aqui e ali, lançava umas frases. Divertia as miúdas,  a professora, e toda a plateia que tinha ao seu dispor. Algumas dessas intervenções eram de uma pureza sem par, misturadas em  sagacidade e inocência, por vezes, concluia em paradoxos perfeitos.  Daqueles que nos obrigam à consciencialização da nossa perda da inocência, da imposta formatação existente nas nossas cabeças… 

Como deveríamos seguir lhe o exemplo e repensar as coisas simples..

A viagem implica tempo, o tempo mudança, e a novidade acalma, os momentos intervalam-se mas os quatro sempre presentes...

 "Ó Sra Professora, o João está a chorar!"

Disse a pequenita atrás dos seus óculos. 

A professora sempre atenciosa: "Que foi João?"

"Estou com saudades do meu avó." Disse o João traquina. 

A professora explicou, já era notório o interesse circundante...

O Pedro saiu de casa às 4:00 da manhã, de Sanfins do Douro, saiu para ir  apanhar um avião, fazer um batismo de voo até Lisboa, juntamente com os colegas.

Chegados a lisboa, andaram de Metro,  foram ao Coliseu ver o Circo, visitaram um museu, cuja referência alegrou o João de tal forma, que deu um aberto e alegre grito! Onde foi nao sei mas foi bom para o João!

"E fomos ao MacDonalds!" Acrescentou a  Tranças.

Regressavam agora a casa. 

O Avô do João está em casa e está bem. Todos os dias, aquela hora, a carrinha da escola deixa o João em casa do avô. Era hora e o João gosta do Avô, sentiu saudades. É simples o amor.

Nesse momento, e apesar das máscaras, foi visível e sentida uma comoção geral, os olhos falaram, havia em nós vários Joões a sentirmos as mesmas lágrimas de saudades do avô. 

Somos todos tão iguais...

E a carruagem ficou toda nos miúdos, os olhares trocaram-se, houve risos colectivos. Havia generosidade no ar… 

Soube a Natal!

Se calhar foi, quem sabe? 

Que o seja!

Importante é haver, viver as saudades, ser Natal é fazer todos presentes...

Um beijinho para as minhas saudades. 

Saíram no Porto.

Tinham transporte à espera, o Avô do João veio buscá-los.


Ibrahim  

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