segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Bicho Homem.

Não foi pela posição, apesar desta parecer pouco natural nos homens. Nem propriamente pela postura, foi sim pelo tempo da posição. Para a raça humana cada postura tem o seu tempo, raros são os que ultrapassam o tempo dessa mesma postura.  Os joelhos enterrados na areia, o seu corpo pousado nos pés, os braços caídos, repousavam lateralmente ao corpo, as costas das mãos  pousadas na areia, palmas abertas viradas de frente, para o mar! E ali estava,  imóvel, olhos fixos no mar, no  horizonte. Abertos, muito abertos. Não piscavam, não lacrimejavam, apesar do período de exposição. Não creio que estivesse a ver o que olhava, o seu olhar era muito mais profundo, como se estivesse a ver muito para além do visível... Ali estava, ali ficou, imóvel, completamente imóvel!
Rapidamente compreendi, ainda iria permanecer assim muito tempo, naquele transe.
Comecei aos poucos a sentir a comunicação com aquele ser. Um humano, que quase alcança a nossa forma de comunicação, sem palavra, apenas o sentido da emoção em partilha com todos os seres que o sentem.
Estava em luta, uma guerra interna, como se vários seres dentro dele fizessem diferentes interpretações dos sinais que recebe do mundo.
 Não seria justo me aproximar. Dei lhe o tempo necessário para se descobrir, para que dos sinais, fizesse a escolha da sua compreensão.
Aproveitei o tempo para conversar com umas crianças que por lá se encontravam... Conversar... Emitir uns grunhos que lhes criam compreensão, uma conversa cujas as palavras são supérfluas! Como fazem todas as crianças. Cuja codificação das conversas é feita pelo amor.. Pelo valor sensorial do bem. O sorriso provoca sorriso. A alegria dá origem à alegria. O amor responde-se com amor...
O tempo passou,  o sol desvanecia e o vento, agora frio, criava já algum desconforto.
Não nele! Não em mim. Ele imóvel,  nenhuma alteração ocorrera desde a primeira vez que o vi. A mesma posição, a mesma postura na procura... O mesmo olhar! Eu, sentado em observação, um sorriso no focinho, uma lágrima de comoção pelo que assistia e sentia.
A praia ficava agora vazia, e os nosso corpos eram as únicas saliências no areal.
Resolvi aguardar, pois apesar de ter em mim a urgência de o sentir, mantive porém a distancia necessária para cumprir o respeito pelo momento. Enrolei me perto dele. Respeitei o silencio, aguardei...
A paz do momento, levou-me ao sono. Como sentisse o cobertor do seu transe, dormi...
Acordei com a sua mão quente a afagar-me o pelo.
"Bom dia dorminhoco!" Disse-me. Apesar de a noite já se ter instalado. A  areia já tinha arrefecido. Sem fazer nenhum som, estiquei-me ao comprido a olhar as primeiras estrelas que surgiam no manto. Ao que ele me imitou, já não precisávamos do olhar para comunicar, o seu canal estava agora completamente aberto, como se de um Bicho se tratasse. "Boa ideia! Adoro espreguiçar. Contemplar os astros. Que bom que aqui estás Bicho!" Ficamos uns minutos em silencio, lado a lado, em pura contemplação. Trocamos vidas, experiências, um turbilhão de informações que simultaneamente se trocavam. Depois do choro e do riso das vivências de cada um. Sentiu a humana necessidade de se exteriorizar em palavra. Em palavra humana, sem que com isso deixasse de continuar a comunicar em une-se-mo no canal por nós, Bichos, utilizado.
"Quem me dera ser como vocês. Apenas amar. Amar tudo e todos em igualdade. Sem que nenhum amor tome o espaço de outro. Que a vida me permitisse apenas incluir, sem nunca retirar ao amor.  Mas... A maioria dos homens não tem esse espaço. Vive a ilusão de que o coração é ilimitado e que ao amor apenas se acrescenta... Mas quantas vezes amei sem que a dimensão do meu amor coubesse no outro. Quando o valor do meu amor, de tão grande, cria a irresistível pressão que provoca o transbordo,  e derrama o sentimento no outro, vejo no outro o meu amor vazio, subjugado a diferente valor do meu. Subitamente, transporto o eu, sozinho! A leveza do amor transforma-se num fardo, difícil de carregar. Não serei eu humano, bicho? Pois que em mim, nunca se esvazia! E em vez do derramamento, nasce em mim, um outro espaço, vazio, sempre ansioso do amor. E os fardos que carrego, nunca desaparecem, transformo esse amor, em simples amor ao amor. Sem objecto! Amar apenas a beleza do amor, não o construí  sozinho. Nenhum amor se constrói só, mas agora, guardo-o apenas eu... E vocês... Bichos! Vocês carregam o amor de todos como vosso...  Encontrei -me agora. Somos nós! Um só Bicho! É esse o segredo, não é Bicho? Nunca deixar de amar, se para o construir precisamos do outro, para o transportar, para amar, bastamos nós...
Como me enganei, como é leve afinal o amor, Bicho"
Nesse momento grunhi,  explodi em comunicação com todos os outros Bichos.
Existe mais um Bicho entre nós! Todos o sentiram, todos o expressaram: 
Bem Vindo Bicho Homem.

Bicho

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