sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Esperança de Bicho

Uma criança acercou-se de mim sem eu me aperceber e agarrou-me o dedo!
Uma sensação tão boa... Tanto calor, tanto amor... Tanta ternura!
Estranho! Não senti a sua aproximação...
Ando com os sentidos toldados...
Não olhei para a criança mas sim para um homem deitado na soleira de uma porta, um dos muitos sem abrigo que se deitam pelas cidades..
Enquanto olhei para o Homem a criança desapareceu.
Senti-me na obrigação de ir ter com o Homem.
Chamava-se José, tinha 43 anos e há 7 anos que vivia na rua. Tinha fome e frio.
Durante algum tempo tentei ajuda-lo, apesar da sua relutância. Dizia-se não ser merecedor. Tentei várias vezes saber o seu passado mas ficava perturbado e fechava-se no seu cobertor...
Finalmente após alguns meses de visitas semanais...  José aceitou integrar um centro de ajuda!
Numa visita que lhe fiz, José, já de barba e cabelo cortados, servia com orgulho na cantina. Apesar das cicatrizes do frio, as suas rugas formavam curvas de sorriso.
Notei o cuidado com que tratava uma rapariga que estava no centro, foi a primeira vez que a lá vi, mas por ausência minha, não dela!
Senti que o José lhe falava com a alma, como quem partilha a dor para a transformar em esperança... Aproximei me... Eu sei! Não é correcto ouvirmos o que os outros dizem sem sua autorização. Por isso, e na tentativa de não incomodar a rapariga, que não me conhecia de lado nenhum, aproximei me por trás desta, de forma a que o José me visse. Apercebeu-se da minha presença! Mantive-me à escuta...
Dizia o José:  "Achas que não compreendo! Sim a  tua dor é a maior do universo, como muitas outras! Não quero que desapareça em ti a tua dor! Apenas que aprendas a viver com ela...
Vou-te contar a minha história...  em tempos fui gerente bancário, trabalhava cerca de 10 horas diárias, com frequência trazia trabalho para casa aos fins de semana.
Tive mulher, que sempre me amou e respeitou. Tive uma filha que me adorava...
Um sábado foram ao cinema... eu deveria ter ido também, pois tinha tinha prometido à minha Pipoquinha....  Iria com elas, deveria ter ido com elas! Contudo o trabalho...
Deveriam ter chegado às sete da tarde, mas absorvido pelo trabalho apenas pelas das dez me apercebi da ausência...
Liguei-lhes! Nada...
Entrei em desespero! Policia, hospitais.. tudo! Mas nada! Só aflição e a ausência!
  Apenas no dia seguinte as encontraram numa ravina, a cerca de seiscentos metros de casa! Morreram ambas. A minha filha tinha falecido apenas a cerca de 3 horas de a encontrarem, esvaziou-se em sangue de um profundo corte na anca...
Como posso não compreender a tua dor? Como posso não compreender a perda? Como posso não compreender a culpa? Como posso desculpar-me?
Eu sei!
É difícil aceitar a realidade!
Aceitar a continuação da vida!
Aceitar a existência! Facilmente trocaria a minha pela da Pipoquinha!
 Ser, que na dela, carregava a minha...
Mas aos poucos... Finalmente compreendi!
A existência dela está em mim e comigo continuará... dias de partilha virão!
Quero apresentar-te um amigo que me ajudou! -Bicho, esta é a Maria."
Em sobressalto estranhou a minha proximidade, meia a medo olhou  para mim...
Sem conseguir tirar os olhos do chão disse um tímido, Olá! Um coração lacerado, negro de dor, cuja origem da dor já nem se distingue...
Nesse mesmo momento senti um forte abraço na minha perna, como se uma criança se tratasse...  A repetida sensação de amor e ternura... Uma explosão em mim! Olhei para a perna e ninguém se encontrava-lá!
Enquanto José, sorria, uma lágrima de esperança correu-lhe na cara...
Tanto calor! Tanta ternura! Tanto amor! Tanta esperança...
Obrigada Pipoquinha.


Bicho

1 comentário:

  1. Uma enternecedora história de amores e ternura, onde a solidão se transforma também em saudade.
    Bom Natal, Nuno
    Bjis

    ResponderEliminar