quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Gota de fumo


Acordei com o Ibrahim a mexer nas gavetas do seu escritório, que por sinal, é também o meu local de repouso...
Nem me deixou terminar de grunhir, ao se aperceber que estava acordado, e mantendo-se na sua busca pelas gavetas...
Rodou o tronco e a cara para mim e com um sorriso, como quem espera uma resposta confirmativa, perguntou;
- Viste uma caixinha amarelada...  quinze centímetros por oito... tem três tubinhos... Os charutos! Viste-os?
Respondi em mímica, sem necessidade de qualquer grunhido...
Mentiria! Se eu o soubesse, se eu o conseguisse, apetecia mentir, dizer: Não, não os vi! Só para manter o suspense! Só para contrariar a certeza do sorriso! Mas apenas para o elevar à gargalhada, pois que nem a  a mentira poderia criar duvida!
- Espero que haja pelo menos um para o fumar... A ler!
E abriu repetidamente os olhos em movimentos de convite.
Dois dedos levantei rapidamente, enquanto espetei a face de alegria, confirmando a imediata combinação!
O Ibrahim preparou a musica.
Eu fui directo à gaveta onde se encontrava a caixa dos charutos! Não fui eu que os pus lá! Mas o Ibrahim  tinha mo dito, no caso de não se recordar...
Sentamo-nos na varanda marquisada ..
A musica começou, um lamento de Charles Mingus,  não é um lamento de tristeza... Soa mais a uma constatação da existência... Dissonâncias que se encontram...
Coloquei o teclado na minha frente, o ecrã na frente da cadeira do Ibrahim... *
Distribuímos as mantas, sentados e aquecidos e uma parede de vidro com vista para o horizonte, o momento começou a compor-se...
Dei-lhe um tubo metálico enquanto desenroscava o meu.
Passou-me a guilhotina, enquanto executava o corte, já o Ibrahim acendia um grande fosforo...
Os Edmundos fumavam...
Estamos prontos...
Comecei a escrever:
"Não te recordas!
Foi exactamente numa tarde igual a esta...
Talvez com a mesma chuva...
Exactamente o mesmo quadro!
Foi aqui...
Que as gaivotas, de igual porte, contrariaram o vento em voos errantes...
Foi aqui...
Tal como agora, que nos sustivemos pelo prazer da observação das coisas simples...
Foi aqui...
Que duvidamos da razão e colocamos a duvida na inebriação de uma fumaça asfixiante...
Foi aqui...
Que as gotas de água, escorridas do céu, aplaudiam sonoramente cada concretização do seu fim....
Foi aqui...
Que uniram carreiros como revoltos rios, uniram elementos, criaram pequenas ilhas de vida, fixaram, uniram e sustentam...
Foi aqui... Tal como hoje, que sentiste em ti a ausência da razão e passaste o seu limite...
Que te sentiste uma gota de agua, uma gaivota, um resíduo, um mar, uma planta, um ser...
Sentiste toda a força do universo, apenas com parte do visível...
Sentiste a ligação que comigo tens.
Sentiste eu e tu, sentimos, mas sem plural, juntos mas um só!
Nós... As gotas,os sons, as gaivotas, a musica, a vida, o fumo...
Esse momento em que tu e eu,  fumávamos um charuto do vingativo conde, nunca é uma recordação..."
Puxou-me o teclado e escreveu, ..apenas o é...  partir daqui seguiu o Ibrahim...

Bicho

* Já temos uma maquina, ainda em fase experimental, que me permite falar... Mas há momentos!

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